Sheila acorda como se estivesse
tomando um susto. Mas foi simplesmente o ar, na verdade a falta dele nesse
calor da cidade que parece não ter mais fim. Ainda assustada, mas voltando a
ter consciência e percebendo que o dia começou, Sheila começa a apalpar os pés
no chão procurando com a ponta do dedão suas havaianas azul claro com marca de
pé preto que dão a entender que Sheila e as havaianas tem uma relação de
cumplicidade instaurada há tempos. A havaiana não está lá e Sheila tem mais um
susto o que é bem desagradável para quem ainda nem acordou direito. Sheila
procura nos cantos da casa e até na casa do gato e nada. E depois pensa mais e
nada. Uma bomba explode e mata alguns em algum lugar no oriente segundo o noticiário que passa na tv alta do vizinho. E ao agachar-se no chão, Sheila sente o peso do mundo, a bunda mais murcha, uma
vontade imensa de simplesmente dar um “crtl” mais alguma letra, “l” ou “f”,
para achar seu par de chinelos de todo dia. A sensação de que tudo é perda nessa vida se
instaura em Sheila e ela sente vontade de matar o gato pra sofrer tudo de uma
vez só. O gato na mesma hora percebe e sai correndo, se escondendo atrás da
geladeira, aonde passará as próximas horas com a barriga pra cima. Se bem que o
“ctrl + z” seria de uma utilidade incrível na sua vida de seis anos pra cá,
pensa Sheila. Mas isso já é outra história, não adianta chorar o leite
derramado. Bola pra frente diria sua avó Leilinha do sul. E na verdade se
tivesse o tal “crtl + z”, Sheila voltaria para o ventre de sua mãe e tentaria
ver se ela mudava de ideia ao escolher seu nome. Sheila não era um nome que
tinha a ver com ela. Magra, cabelos castanhos lisos, olhos castanhos, designer
e aluna de pilates. Só o nome Sheila ocupava mais espaço e ambição que a
própria Sheila tinha tido na vida. As sandálias estavam embaixo do sofá e ela
não sabia como tinham parado lá, o que era angustiante. Ficou tentando lembrar
dos passos do dia anterior, enquanto ia tomar um banho. Correu para abrir o
celular, os pés molhados sob as havaianas. Sua mãe fez um whatsap e fazia
questão de mandar um BOM DIA todo dia às 07h da manhã, mesmo sabendo que Sheila
só acordava depois das 9h. O que incomodava Sheila, pois queria que a mãe
pensasse que ela levava uma vida saudável, assertiva, e as 8h já estava tomando
um expresso. Então assim que acordava ou quase isso, ela abria o celular só
para a mãe ver a última hora que ela entrou. Mesmo que ela nunca respondesse a
mãe na esperança de um dia aquelas mensagens desaparecerem de sua rotina. Sabia
que a mãe não ia parar e o dia que ela não recebesse BOM DIA, más notícias
viriam no lugar. Colocou a roupa. Uma calça larga bege e uma blusa branca. Foi
pendurar a calcinha no varal dos fundos e deu de cara com a empregada da
vizinha. A empregada da vizinha trazia a Sheila uma vontade louca de trepar.
Era como se ela visse que Sheila não transava muito e nem muito bem e Sheila
olhasse pra ela querendo mostrar que, no fundo, já tinha dado no hallzinho da
lixeira ou numa escadaria na lapa. Mas não tinha. E a empregada da vizinha
dormia sabendo disso. Sheila foi pro quarto ver uma roupa nova e tocava em si
como se estivesse teclando num tablet sem o mínimo de convicção. Obviamente se
sentiu patética e manteve a roupa e a pose de quem não precisa provar a ninguém
já transou com caras nojentos em situações nojentas. ok. Pegou as coisas e
certificou-se de que havia deixado as havaianas no local de sempre. Quase saiu,
mas voltou. Disfarçando ir buscar alguma coisa e fazendo questão que ninguém
percebesse, beijou lambido cada parte do par de chinelo azul clarinho. Mais tranquila,
saiu de casa.
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