sexta-feira, agosto 15, 2014

Só queria um diálogo vadio - capítulo um

Calé e Ana

Eu tenho inveja de quem entende o tempo do outro. O tempo, o timing. Numa conversa, não importa qual o nível de intimidade, mal eu mando a minha sentença e já começo a pensar no que vem depois. Não dá nem jeito de ouvir direito o que alguém tem pra me falar. Até numa mesa cheia a única relação que tenho é a minha comigo mesmo. Num jogo de eterna atração e repulsa. Gosto mais de mim quando vejo os outros sorrirem e me detesto quando mato um assunto por falar como quem vomita as referências de uma vida.

 - Calé?

 - Oi.

 - Ta ai quieto, sozinho, por que?

 - Ta só distraído.

 - Pensando em que?

 ( ) meu pai ( ) trabalho ( ) Na Ebóla na África. ( ) No frio da noite

 - No meu pai.

 - Ele tá bem?

 - Tá.

 - Hum.

 - Velho.

 - É. Eles envelhecem. É uma droga.

 - Mas ele tá bem. Tem memória, caminha no calçadão, come Becel. Tá bem.

Que idiota! "Come Becel". Ela não vai entender a ironia do "come Becel", ela só vai te achar entediante por ter falado isso.

- Foi irônico.

 - O que?

 - O comentário da Becel.

 - O que foi irônico?

 - Como se "comendo Becel" garantisse ao meu pai uma velhice melhor.

 - O que tem de irônico nisso? Acho que não é ironia... 

- Então vamos discutir "figuras de linguagem", Ana.

Eu sou entediante. Prazer, Calé, o entediante.

 - Eu vou voltar pra sala, Calé.

 - Já to indo lá.

 - É por causa do sal da margarina?

 - Que, Ana?

 - A ironia. Você falar que seu pai come Becel e por isso é um velho saudável. Quando, na verdade, Becel ainda tem gordura e sal para entupir as artérias dele.

 Ana ri. Eu lembro de Ana pelas fotos que ela colocou no facebook quando estava na India. A viagem que mudou a vida dela. Ela estava muito bonita nas fotos e, sem dúvidas, voltou diferente. Mais espiritualizada. Mas eu ainda tinha esperança de resgatar uma velha coisa da versão da Ana que conheci. Ele se via evoluindo, eu a via tornando-se aquele tipo de mãe que coloca o filho num colégio em que os próprios pais participam da educação. Essas invenções "cool" para formar um novo ser "cool" que perpetue seu DNA. De merda.

 - Não, Ana. Não foi essa a ironia.

 - Ah não?

 - Não. A ironia consiste em imaginar que a velhice pode ser melhor dependendo da droga que você coloca no seu pão. Ok. Ok. Não foi uma boa ironia.

 - Ah. Acho que entendi agora.

- Que bom. Acho que não íamos conseguir nos entender.

 Ana fez uma expressão de compaixão típica das pessoas espiritualizadas. Quando ela percebeu que eu percebi aquela expressão, conseguiu ainda piorar aquele momento bizarro, batendo a mão nas minhas costas como quem diz "um dia você vai sair dessa e lembrar desse momento com um sorriso no rosto".

 - Ana, aquelas suas fotos da Índia eram incríveis. Você deveria fazer um curso de fotografia.

 - É. Um dia tomo vergonha na cara e faço.

 - Boa.

 - Vou pra lá, Calé. Ainda não comi o quichê da Denise.

 - Quem?

 - A namorada do Vitor.

 - Ah.

 - Que cara é essa?

 - Não acha que ela é legal e bonita demais pro Vitor?

 - Calé, Calé, o Vitor gosta tanto de você...

 - Eu também gosto dele. Infelizmente isso não faz ele ser mais bonito ou legal.

 Vitor e eu em 2003 comemos a mesma puta em Buenos Aires. Éramos esse tipo de amigos. Hoje é diferente. É como se a única coisa que eu pudesse falar de Vitor é que ele é um comedor de putas.

 - Você não vem mesmo? To indo.

 No pé de Ana que sai da varanda, eu repasso a conversa toda que tivemos na minha cabeça como um ritual de sadomasoquismo. Seria muito mais proveitoso para os meus amigos se eu me tornasse um clone da quiche da Denise por exemplo. Ou um poste para Ana estacionar sua bicicleta quando fosse buscar a filha no colégio hare-hare.

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