terça-feira, setembro 07, 2010

Cândida

Cândida chegou em casa, tirou o casaco, e antes que as bochechas cessassem o corado do rosto – fruto do calor da cidade do Rio – colocou seu disco preferido para tocar.
Guy Lombardo. A música: “you’re driving me crazy”.
A vitrola parecia entender que Cândida queria música, Cândida sempre queria alguma música, e espertamente, a vitrola fiacava colocada em frente a porta principal do outro lado da sala, perto das escadas. Chegava de casa ou descia as escadas que davam pro quarto e lá estava seu objeto preferido, pronto para ser aproveitado.
Guy Lombardo era só para os dias especiais. Aquela quarta-feira era especial. As bochechas, mesmo com a água gelada e os suspiros profundos, não deixavam o tom avermelhado. Cândida abusava do estado similar ao seu nome e da combinação perfeita dos tons da bochecha com seu novo colar de pérolas, que fazia questão de usar em dias como aquela quarta-feira.

Seu pensamento era apenas um: “You’re driving me crazy” – com todo seu mau inglês. Aquela música que ela tanto ouvia sozinha e tanto queria alguém para dedicar. Havia conseguido o que tanto queria, se sentir louca – novamente – por alguém.
Cândida dançava sozinha. Sentia-se como Cid Charisse. Sentia-se Celly Campello. Sentia-se a mulher mais sortuda de todo mundo, não havia filme de Hollywood que pudesse mostrar tamanho amor, Doris Day que lhe perdoasse.
Enquanto repetia a música mais feliz e grande em si se sentia. Tudo fazia sentido. A vida era a coincidência mais linda, seu vestido era o mais leve e seu sorriso lhe transportava às lembranças boas dos primeiros amores. Todos os amores que haviam passado por ela, haviam, finalmente, sido curados. Não havia mais peso, auto-piedade ou dúvidas corriqueiras.
O mundo era simples e divido em dois: Pré e pós “You’re driving me crazy”

“Ah, cândida...” repetia para si mesmo toda vez que lembrava da cena.
Ela passava em frente à praça, seu objetivo – depois esquecido – era comprar um bolo de coco. Avistou-o na sorveteria, ele estava com os amigos, com o topete e um sorriso que a fez querer um sorvete de morango. “Duas bolas, por favor”
Ficou parada, sozinha, no balcão. Quando ele a viu, ela logo acenou. (Sua ansiedade sempre foi uma característica que a deixava louca. Era incontrolável.) Ele sorriu e, bem devagar, deu um aceno. Dalí em diante, seu rosto cadê vez mais ficava corado diante dos indícios de reciprocidade que ele lhe dava. O aceno, o chamado para ela se juntar ao grupo, a piadinha sobre seu cabelo chanel, o pé dele que durante exatos 8 minutos e 46 segundos se manteve colado ao dela, o beijo no rosto mais demorado que o de costume e a oferta de deixá-la em casa, que ela recusou, pois queria se posicionar e não dar mais bandeiras de que estava perdidamente apaixonada por ele.

Ainda tocava “you’re driving me crazy”, era a sétima ou oitava vez. Foi quando aquele sentimento todo começou a se transformar no medo. Medos apareciam involuntariamente. Quando nunca o tivera era fácil, só planejava, sonhava, brincava com suas próprias fantasias. O sonho era muito menos sofrível. Essa chance de realização, logo a deixou com medo, medo de perder o conquistado, medo dele não lembrar do que ela disse, do sorvete que ela pediu. Medo ainda mais agoniante de toda aquele momento, que ela a cada vez que passava em sua cabeça lembrava de mais um detalhe, se perdesse da mente dele. Medo de que ele não gostasse tanto de Guy Lombardo.

Abriu os botões da blusa, apertou os olhos e decidiu-se: da próxima vez, peço sorvete de nozes. O resto não havia como resolver naquele momento e a doce Cândida, mesmo que perdida em seus medos e juventude, sabia disso e dançava.

3 comentários:

  1. nem gosto de sorvete de morango.
    Mas o texto(cronica?) ficou uma delicinha.

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  2. muito sugestivas as duas bolas de morango amiga! eu adorei! acho que é um dos seus melhores textos

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  3. Belo estilo e texto maravilhoso.
    DESENVOLVA SEMPRE ESSE DOM QUE VOCÊ POSSUI...

    VOVOZE

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